As flores
Hoje o céu amanheceu cor de púrpura em respingos roxos. Um sentimento turvo tornava o meu humor ainda mais amargo que o gosto que exauria em meu paladar. Eduardo dormia como um anjo que repousasse em minha cama. Dormia um anjo comigo, mas eu não me via em proteção. Estava vulnerável, aflito, tal como um boi que sofre a dor do abate. E quem beberia de meu sangue? Quem comeria de minha carne? Ou seria eu o meu Judas?
O Eduardo quando dorme se entrega fielmente ao aconchego do colchão como uma corsa ao encontro das águas e eu me vejo como terra seca em carência d’água. Somos diferentes, somos iguais, somos mistos. Somos quem?
Tem dias que me sinto como uma esponja a sugar toda vitalidade de sua juventude. Quero sempre mais. Sou insaciável e inseguro. Vejo nos traços de seu corpo o cobiçar de cada mulher que a um mundo trairia para percorrer, mesmo que uma única vez, os seus vales e montes. Elas trilham seus desejos de aventura nesta trilha que eu percorro nas manhãs e madrugadas e às vezes me perco entre árvores e cipós, pedras e descidas, picos que se desfazem ao fim. E eu sei que isto o afaga e envaidesse.
Hoje acordei com o peso da culpa. Ontem fui fiel à mim. Ontem traí Eduardo.
- Eu te amo!
- O que o senhor disse, João?
- É isto mesmo que ouviu. Não tenho por que esconder o que se vê estampado em meus gestos. Eu te amo!
Quando eu disse estas estúpidas palavras pela primeira vez, o que espera no mínimo ouvir era o mesmo, mesmo que tímido, mas ele apenas soube rir, rir, rir e retornar o riso. Não entendo o que de engraçado tinha. E ele gargalhou outra vez. Dudu, era uma daquelas pessoas que cria num amor revelado em atutudes e práticas apenas. Não poderia ser mais cliché. Mas seus gestos e escolhas meticulosas e certeiras, em naturalidades não deixavam sombras de dúvidas sequer de seu sentimento fundamentado em escolha de envelhecer comigo, mas eu sabia que os anos chegariam mais cedo pra mim. Sei que apenas sete primaveras não fazem verão, mas recobriam a minha paz de inverno. E foi no calor de seu melhor amigo, se é que posso chamar aquele demônio oportuno e sedutor, de amigo fidedigno, mas em seus braços que encontrei o meu outono. Ele fazia as estações retrocederem em minha ambientação, para que quando chegasse a primavera, fossem flores para o meu próprio velório que eu colhesse. Eu sentia a morte se aproximar de mim e amargurar o meu gosto. Como eu iria trafegar pelo corpo que me traduzia paz se o meu juízo se transcrevia de culpas e condenações? Foi a única vez na vida que sabia que merecia ser condenado de fato pelo céu. Foi a única vez que não me justificaria o amor. Eu estava sujo em trapos e farrapos e Eduardo só soube sorrir pra mim.
O que fazer se nossas lembranças são levadas pelo vento assim como folhas picotadas de papel que se espalham pela sala? Eu tinha as lembranças de teu amor nunca pronunciado, mas sempre dito. Isto me estrangulava a consciência. Talvez por que foi a primeira vez? Não. Não foi. Era a terceira, mas eu pensava que com mulher não contava. Ou sempre contou? Estupidez de relacionamento aberto. Procurávamos a liberdade e nos abrimos pro engano e auto-traição. Nós velamos nossos finados embriagados pelas lembranças do convívio, aventuras, histórias e até mesmo na falta dela e à caminho do cemitério nos desprendemos de todo o sentimento, e ficamos na beira do esquecimento. Eu não quero um corpo, uma lembrança encarnada ao meu lado para me recobrar a memória do amor. Eu só queria mais que nunca sentir o amor. Talvez ele até estivesse ali, mas minha poeira impedia de contemplar. Ah, se cruzássemos novamente a alma ao coração! Os olhos à boca! Contradizemos-nos em nosso próprio entendimento de amor. Minha mente se embaralha entre os nódulos cerebrais que transam indecentemente justificativas para minhas intenções e questionamentos. Não encontro respostas ou procuro descansos e confortos? Enigmas de traição.
Por não cumprir um mandamento do amor sou excluso do céu, e tenho moradia garantida no inferno. Isto não é todo mal, pois entre os rejeitados e excluídos há certificação de que há uma verdade, somos todos iguais e desprovidos de amor, carinho e respeito. No inferno já não há necessidade de máscaras. Talvez seja esta a pela primeira vez que sentirei um gosto diferente deste fel.
CONTINUA...
Ancioso pela proxima parte
ResponderExcluirPena que acaba amanhã né?tá tão bom,quero mais ,queria muito mais.
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