domingo, 23 de novembro de 2025

IDEAL

te construí como um ideal
entre acolhimento nos silêncios
te reconheci feito meu mal
carências subscritas por extenso 

e era curto demais o permanecer 

te perdoei as fugas
as mesmas que criava para se achegar a mim
um labirinto fiz das ruas
as mesmas que desbravava na busca do sim

e era duro demais o anoitecer

eu tramei o teu cheiro nas fronhas de casa
chapisquei tuas confidências nas paredes
corrompendo tratados na espera pus asas
solei nosso pas de deux em redes

e era puro demais o pertencer

a casa ruiu
o rio de tanto chorar sorriu
pelo bem de nós a solidão se achegou 
amar é rio que o passado costurou 

é na escolha por nós 
que encontramos voz
para de nossas ilusões 
nos despedirmos 
e quem sabe fazer as pazes 
com o silêncio que reprimimos


domingo, 16 de novembro de 2025

UM DIA CHEGA

casa, aos domingos,
tem um rumor de abandono
e ninguém nota
só eu,
sentado no miolo do silêncio,
ouvindo o tempo escorrendo pelas paredes frias

a tristeza bate à porta, com sua velha intimidade,
mas hoje eu não abro
hoje não

se o amor não quer entrar,
que fique lá fora reclamando da vida,
que deixe suas queixas espalhadas pelo corredor
por onde não corre mais o rubro do sangue

nas minhas preces teimosas,
é teu nome que ainda me escorre da boca
é pecado suspirar o próprio peito?
é ingratidão reconhecer a verdade cruel
do eco vazio que me devolve perguntas
que eu não quero ouvir?
tampouco responder

passei o dia recolhido
no recôncavo do meu quarto em penumbra,
e juro
senti os deuses lamentarem por nós
nossa desumana arrogância 
sangra até a esperança dos deuses,
a minha jaz em paz 

choveu lá fora 
aqui dentro, minha terra continua seca,
escamada em erosão
não tenho lágrimas para hidratar meu silêncio
não importa se somos altivos,
ou melindrosamente carentes.
pouco importa se somos sexo,
flerte, fantasia, madrugada
somos desejos de um pas de deux
que nunca dançamos
acho que você já nem se lembra
do amor que prometeu ao vento ser meu
e, sinceramente,
será que sabes o que é amar
se nunca, nem por um instante,
olhou pra si com ternura?

somos anseios por danças quentes,
suspiros ao pé do ouvido,
madrugadas de quadris tímidos
e vontades que queimam
somos provocações de ficar
quando o mundo insiste em nos mandar ir
para nossa misericordiosa proteção 
mas andamos demais parados,
congelados na espera de uma mensagem
que não chega

somos segredos, nada secretos
somos sagrados, e o amar é profano
ele erra, ele ri, ele humilha
amar nunca foi se fortalecer 
é sempre se quebrar,
ruir,
voltar ao pó
para se reconstruir em dois
entrega
e tudo que se doa
por mais que doa
não se reivindica a volta
e de volta e meia você volta
sempre meia porção de você
o amar deveria ser encontros de inteiros
circulo em quebradas metades

eu tenho saudades de você
tenho falta da musicalidade de tua voz
música que embalava nossos beijos
do ideal de você que inventei,
coisa que todo carente faz
quando o peito insiste em ser palco
do que não existe

lutei contra mim,
tropecei nas minhas próprias ansiedades,
tudo na esperança vã
de ganhar o favor
de um único gesto teu, um olhar
migalhas que disputo com os pombos 
sempre sem paz 

e ainda assim,
hoje,
não estou para tua companhia, tristeza
a porta segue fechada
a casa silenciosa, apagada 
mas o peito,
ah, o peito ainda insiste em ranger

que clama por um dia o amor chegar

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

CONTIGO

saudades de você 
do tom da tua voz
vontade de te ter comigo

o dia amanhecer
e noite só pra nós 
viver e reviver, abrigo 

tanta coisa pra falar 
e nada pra dizer
me basta teu olhar, menino

fiz um chá pra te acordar
pra mim e se tiver que ir 
meu peito pode ir contigo 

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

ELA

ela só queria falar
degustar a sensação de uma única vez
ser escutada em vibrações de generosidade
sem lé com cré
em desconexas reverberações de sua alma

ela estava cansada da personagem que tudo suporta
e em sua porta já rangia
a urgência do organizar
do pronta estar

mãe, filha, potente, mulher
colo, mão, gente, só o que puder

ela só queria um afago
sem performar ser frágil
juntar os cacos dos sonhos da última noite que teve
juntar os trapos sem perder os rasgos

ela só queria um minuto de tua atenção
a desnecessidade de tua razão
toda dose transbordante do querer
ela só queria
leveza em seu ser

ela só queria o teu silêncio
e quem sabe assim gritar sua emoção

MIGALHAS

Tenho medo de admitir, mas quase tudo o que faço é por carência.

Por esse buraco invisível que se abre quando o dia termina e o silêncio começa a me escutar entre as nuvens que se abrem entre a cobertura da ponteSou movido por uma fome que não é de comida, nem de amor; é de prova. Prova de que existo para alguém, ainda que por descuido, ainda que por dó. Em tonalidade baixa de ré.

Aceito migalhas como quem recebe manjares. Um “oi” frio já me aquece. Um olhar distraído me alimenta por dias. E sigo, me enganando, achando que talvez tenha algum valor escondido nas entrelinhas dos que mal me notam. E de repente um " como foi teu dia?" que sempre esperei contar.

Sucumbo fácil aos pequenos gestos, mesmo quando não são gentis, mesmo quando só servem para manter-me no raio de alcance de quem não pretende ficar. Chamo isso de afeto, mas sei que é medo. Medo de não ser lembrado, de não ser necessário, de não ser sequer percebido. De ser apenas uma mecânica sedução sem gozo.

A carência é minha mais fiel companhia. Ela me dita as cartas, os textos, os olhares. Ela me convence de que amar, ainda que sozinho, é melhor do que desaparecer por completo.

E eu, crédulo, sigo obedecendo, pedindo desculpas por sentir demais, por esperar demais, por continuar esperando o que talvez nunca venha. Por vir por nós todos. 

Sigo no prosseguir de em pró de nós reatar os nós do gosto ríspido do prosseco que abro para brindar-nos. 

Um brinde ao conviver, partilhar, e ser um Zé nunca aberto ao ser.



segunda-feira, 3 de novembro de 2025

QUANDO NÃO SOLAR

talvez minhas palavras sejam desculpas
talvez as culpas que acumulei
me tornearam ao cúmulo 
da auto violência 

os etílicos que hidratam minha carência 
definham a paciência do esperar
a graça vir

desgraçado é o primeiro canto do amanhecer
perpetuado postumamente 
no melhor que deveria eu
guardar pra mim
feito último pedaço de quindim

cultivei a esperança 
moribunda esperança 
da qual definhei o esperar 

se pode fugir do sol
nunca do acordar

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

OXÍTONA

no tempo de deus 
na sabedoria da deusa
na necessidade do homem
hoje choveu

pétalas desidratadas caíram
dos ecos de tuas palavras
vi uma dança solene
se coreografar em seu vazio

tantas promessas ao vento
tantas eternidades perpetuadas
quantos fins ensaiados

eu, como sempre, sertão 
você, como nunca, busca
eu, numa sútil, erosão 
você, na maestria da fuga

ontem e hoje choveu
em minhas lágrimas 
oxítona do verão 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

TUDO DEU

 Quando o chão resseca e o vento pesa em pranto

O Rio Paraíba está seco, eco de grito 

Os olhos encharcados se derramam no rito 

Que escorre pelas veias, sufoca o encanto 

A esperança se afoga, morre manso espanto 

Mas surge um gesto terno, luz no desalinho 

Mesmo no pouco que resta, há de vir o carinho 

Pois no silêncio da peste, a voz rompe o açoite 

No susto da seca, brota o dom que foi convite 

Ela que pouco tinha, muito deu

Eu que nada tinha, sobreviveu

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

ENTRE

O dia está muito louco
O sol se pôs entre nuvens 
De tanto que gritei, estou rouco
O choro se fez açudes 

Um dia de muito sol
Calor, erosão nos ombros
No outro nenhum farol
Naufrágio entre os escombros 

Nem mar, nem chão, nem flores
Andar, escolher viver
Amar nem sempre amores
Feliz quem se basta ser

Talvez seja a quimera
O mito entre a razão 
Você? Ah, quem me dera
Andorinha e sem verão 

A vida só tem graça na arte do conviver
Jesus, graça que basta
O homem querer poder

Eu fico aqui pensando
Se bobo sou eu por crer
Talvez eu seja bobo
E nisso more o amanhecer 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

CAMA DE VENTO

Quantas noites eu deitei sem corpo, apenas carne cansada, sem nome, sem trégua, ou espera.
Os lençóis eram panos de memória, tramas sujas de restos de mim. Cada dobra guardava um pedaço de vergonha, um gesto que não disse, um grito abafado.

Quantas vezes eu coreografei silêncios na sala vazia, ensaiando com os móveis a liturgia do perdão que nunca veio.

Você, ausente e presente, sempre confundindo preço com valor, amor com prazo de validade. Eu, ofertando beijos para bocas que não pediram, apenas para não ver morrer em mim a lembrança do teu toque. Frio.

A hélice do ventilador sopra poeira e lembranças, como um relógio sem ponteiros girando o mesmo segundo. É nela que ouço tua respiração inexistente, é nela que convoco o teu partir, sem piedade, sem volta.

Hoje troquei o lençol da cama. Lavei as marcas de suor e de ausência estampada no colchão velho e duro. Mas a alma continua aqui, manchada, cheirando a quarto fechado, esperando a coragem de trocar de pele como quem troca um cobertor num ritual todo humano, profano e eucarístico.

Hoje troquei o lençol dessa enorme cama. Quem me dera trocar o disco rabiscado que em mim ecoa o teu nome já sem som.

Você é eco em minha cama de vento. E até o vento é de um ventilador.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

CANOA

rejeitei a luz do fim do túnel 
busquei a paz no meio ao caos
eu, tão resistente quanto um papel
lacrimejado em canoa sem paus

eu resisti ao medo, aos credos, aos dedos
insistindo em contrariar a razão 
fluindo em graça feito arvoredo
frutificando fé onde reinou solidão 

deixei o impossível se possibilitar
vendo o invisível acontecer
pra quem procura a cura é lar
na loucura de ação por no crer

eu vi nascer o sol 
na persistência de lutar
meio do túnel é arrebol
sobrenatural é acreditar

e vivi pra crer


terça-feira, 23 de setembro de 2025

MAR

amar-me
e me perdoar
sem armar-me
e então recomeçar 

toda dor tem um destino
choro seco feito leito fino
a saudade é presença que falta faz
o pecado é despedir-se pra chorar em paz,

tua voz sempre foi a melhor canção 
o peito que hoje feres já dispôs a mão 
eu remo contra o vento de esquecer
quem ama vive o tempo do permanecer

amar-te
e te libertar
chorar-te
e o mar te dar

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

DOAR E PERDOAR

muita pose
para pouca posse
no passo de reivindicar 
o paço sem rei

nada é real
tudo é pó
que se perde no vento
e só restam os momentos
de quando era ego

o meu eu
ainda conclama nossa paz
o meu céu 
ainda reclama nossos ais
talvez quem sabe
possa Deus nos perdoar 
e que sabe possamos nos doar
o ar do recomeçar

QUANDO O BERÇO SANGRA

Hoje o céu escancarou o que não adormecia em meu peito regrado a pílulas de autocontrole. A chuva insistiu em desabar como se fosse arrancar cada gota de melancolia que eu mantinha cativa no silêncio. Já não adianta disfarçar o torpor do peito nem fingir que os risos mornos compensam o vazio no eco das horas. Cada passo era uma negociação entre o desejo de ser forte e a urgência de ceder ao pranto que escorria, invisível aos outros.

Sinto que carrego dentro de mim uma marcha lenta de pensamentos, pequenas bombas de medo, culpa, expectativa mal resolvida, soterradas pela cortina fria das aparências. Cumpro horários, troco frases feitas, brindo com copos que sabem de minha dor, mas não a refletem. A cevada escorre, gelada, e me observo: sou oceano em tempestade; sou rosto calmo no espelho quebrado.

Onde estará, então, o colo de uma escuta sincera? O abraço que não pesa? A voz que reconhece, sem pedir desculpas, o tumulto que se move sob a pele? Pergunto ao céu, pergunto ao vento, pergunto ao ontem que deixou rastros de cicatriz. Mas a resposta parece vir num suspiro: apenas estou.

E então, quem sabe, nasça amanhã. Que a aurora venha vestida de promessa. Que floresçam nos meus ossos sementes de esperança. Que o mundo volte a ter cor, não por obrigação, mas porque a alma, enfim, permitiu-se abrir pétalas. Que a alegria pequena, aquela que se atreve a sorrir depois da tempestade, me alcance, me habite, me revolução.

Porque se o céu chorou por mim hoje, que eu possa chorar de volta: liberta, inteira, humana, respirando.

Desabar como se fosse arrancar cada gota de melancolia que eu mantinha cativa no silêncio. Já não adianta disfarçar o torpor do peito nem fingir que os risos mornos compensam o vazio no eco das horas. Cada passo era uma negociação entre o desejo de ser forte e a urgência de ceder ao pranto que escorria, invisível aos outros.

sábado, 20 de setembro de 2025

BOM PASTOR

aprender a descansar
confiar no agir de um deus que é  Pai
e nos convida ao refrigério
dos verdes pastos 
ao colo, proteção, escuta
à uma paz que excede o entendimento

é mesmo sem entender o propósito
continuar a jornada
caminhando na dúvida que sucumbe a fé 
crer que até no deserto nasce uma flor 
experimentar nesse deserto
o cuidado, o amparo, o sobrenatural

se deixar ser filho
retornar ao útero da vida
e aguardar nascer um fôlego novo

o sobrenatural se manifesta
na festa do crer
que às águas tranquilas
o Bom Pastor sempre nos guiará



quarta-feira, 17 de setembro de 2025

LAS PALABRAS

estoy cansado
las palabras mueren en mi boca
como una carrera de espermatozoides
hacia la fecundación

soy tierra muerta, reseca
siento un frío que pertenece a mi alma
que baila una canción fúnebre con la vida

como quisiera poder vivir sin los recuerdos
y habitar la solemnidad de la paz
perdonar a septiembre

iniciar por mí

WHEN PIGS FLY

you can't judge a book
by its cover 
I did it

something inside my chest whispered,
trust
I did it

now my hope is wounded
my bed is bruised
my soul has flown away

you were not a great book
my stubborn foolishness
wrote your name anyway

but I can't feel again


terça-feira, 16 de setembro de 2025

ABBA PAI

 "Porque sou eu que conheço os planos que tenho para vocês', diz o Senhor, 'planos de fazê-los prosperar e não de causar dano, planos de dar a vocês esperança e um futuro."

Jeremias 29:11

Viver é uma arte que exige entrega. Não é para os fracos, porque nem todos os dias conseguimos estar inteiros, de pé, crentes. Há momentos em que o coração se sente cansado, quando as forças parecem esvair-se como água em areia seca. Ainda assim, é nessa mesma fraqueza que somos convidados a mergulhar no abraço de Cristo e encontrar a alegria que renova, mesmo em meio à dor.

Penso que viver é como estar diante do vento do Espírito que sopra testificando vida. Precisamos nos deixar conduzir, como árvores que recebem o sopro do avivamento, como ramos que, mesmo secos, sabem que ao cheiro das águas florescerão outra vez. A alegria do Senhor é a nossa força. É Nele que descobrimos que não caminhamos sozinhos.

Assim como um pai terreno cuida de seus filhos e nada lhes deixa faltar, o Pai Celestial ministra sobre nós cura, refrigério e paz. Ele entra nos lugares mais íntimos da nossa fragilidade, se o convidamos. Deus é sinônimo de respeito e educação! O cuidado de Deus nos envolve até mesmo quando não vemos sinais, pois o nosso olhar é limitado, cercado por montanhas de adversidade. É então que Sua graça desce suave, trazendo paz que excede todo entendimento. Pensa, o pardal encontrou uma casa, a andorinha o seu ninho, e nós encontramos abrigo sob as asas do Altíssimo.

Quando os dias parecem longos e o silêncio de Deus pesa sobre a alma, é preciso lembrar: Ele conhece o futuro e nos convida a escrever cada capítulo. Seu tempo é perfeito e, ainda que a espera doa, ela gera em nós raízes profundas. 

Esperar em Deus é mais do que paciência. É confiança de que Ele trabalha mesmo quando não conseguimos enxergar. Ele nunca nos abandona. Ainda que a tempestade avance, Sua voz é ouvida entre os trovões. Ainda que o mar não se acalme, Ele nos fará andar sobre as águas. Ainda que o medo nos cerque, Seu amor lança fora todo medo. Ainda que faltem palavras na oração, Ele é Palavra viva, que habita em nós e nos dá vida eterna.

Por isso, não desista. Não se renda à noite escura. A esperança em Cristo é farol que jamais se apaga. Se o deserto se estender diante de você, creia que Deus já preparou oásis. Se a dor te fizer pensar que caminha só, lembre-se: já estás no colo do Pai, sendo conduzido ao lugar de paz. Por isso apenas duas pegadas nas areias que percorrestes.

Os planos de Deus são de vida, de esperança, de futuro. São sonhos maiores do que os nossos. O convite é simples e eterno: confiar, crer e permanecer em Cristo. Nele encontramos descanso, Nele encontramos força, Nele encontramos a certeza de que nada poderá nos separar do Seu amor. Ele não abre mão de nós e Seus em misericórdia se renova em cada manhã uma nova porção. É porque todo dia precisamos de um olhar novo. E quem tem olhado para ti?

Hoje, escolha descansar no Senhor. Espere Nele, confie Nele. A vida, em toda sua complexidade, encontra sentido quando repousa nas mãos do Criador. O amanhã já está guardado em Cristo, e o hoje é tempo de fé.

Que você encontre hoje o oasis que só você e o Pai sabem que precisa. E ali haja refrigério, alegria, renovo, paz e que você se permita ser criança no colo do Pai. ABBA PAI!


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Pois é...

Mais uma vez, falho na tentativa de me deitar cedo. A claridade invasiva da tela do meu celular todo quebrado recorta o teto em linhas irregulares, lembrando-me das quedas que ele sofreu sob a minha teimosia taurina por não usar película ou capa. Às vezes me pergunto se não há, em algum lugar inconsciente, um prazer secreto nessa corda bamba que escolho caminhar. Talvez a rachadura no vidro seja um mapa.

Tenho pensado muito, nos últimos dias, sobre os pilares da vida, ao menos os que ainda sustentam a minha. É repetida a constatação de que a humanidade está emocionalmente enfraquecida, débil, doente, e mesmo assim assume pseudônimos de heroísmo que nem a si mesma convencem. E quem vence nesse teatro de máscaras? Não sei. Pergunto-me qual remédio você tomou hoje para fugir de si. Eu tomei o que resta da paciência e mais um comprimido que deveria embalar o sono, mas que apenas me deixou acordado, quatro horas depois, com as sinapses articulando manobras radicais.

Observo os bares cheios pela janela alheia das redes sociais. Há uma efervescência de alegria, celebração, algo que parece não honesto em sua essência. Meu Deus, quem sou eu para julgar o júbilo alheio? Ainda assim, vejo em tudo isso uma antropologia de vontades: olhamos o outro como se estudássemos uma espécie em extinção ou em expansão. Por que não antropofagia, me pergunto, já que nos devoramos todos os dias numa carnificina social, virtual, sexual, econômica? Comer o outro tornou-se ritual sutil.

Queria ter um amigo para sentar no chão da sala, abrir uma garrafa de vinho e me perder entre a cozinha e a sala, preparando algo para servir ou mesmo petiscar um pacote de Doritos sem a obrigação de justificar qualquer tristeza. Talvez, se eu tivesse percorrido os 48 quilômetros de asfalto negro, teria chegado a algum tipo de festa de viver. Ontem alguém me disse que estava feliz. Eu sorri por dentro e reconheci a velha sensação de fraude. Ainda não dei certo. Ainda não alcancei o mínimo para sorrir com a alma. Não me interprete como ingrato. Só procuro uma cifra íntima de completude que não cabe nos bolsos.

O ventilador gira com a mesma insistência de sempre, hélices que abafam os passos de quem transita as escadas logo atrás do quarto onde agora repouso. É curioso perceber que o ruído tem corpo e não tem pele. Ele sopra contra a parede, porque frio já basta o meu coração. E a parede, que sussurra? Talvez conte as histórias que tive vergonha de nomear. Talvez guarde provas de todos os boicotes e sabotagens que me afetam, sentenciando um protocolo lento de autodestruição. Sou uma bomba relógio armada por ressentimento e, ainda assim, não explodo. Apenas fico ali, tic tac, observando.

Sinto a presença doce de um querer que amarga minha boca virgem de certezas. Sinto e ressinto, como se o mesmo sentimento tivesse pernas e voltasse para me perseguir. O recinto se enche de uma escuridão que nem a dama da noite parece capaz de dissipar, mesmo com o incenso pegando fogo e se consumindo em espirais. Sou incêndio e nada queimo, como se cargas de sensibilidade estivessem defasadas no meu circuito.

Lembro de abril da infância, quando a vida tinha alturas e quedas que não matavam. Brincava na roda gigante e prometia não temer a altura, nem a proximidade com o chão. Hoje eu contemplaria a vista e guardaria nas retinas todas as pessoas que cruzassem meu olhar. Isso é vida, pensei sempre. Hoje, ser capaz de me movimentar, remar um pouco, já é vitória. Uma amiga me disse para não remar para longe dela. Havia poesia honesta naquele pedido e aceitei o desafio. Fomos ao Paraíba do Sul, banhamos-nos como crianças, e o rosto molhado serviu para esconder as lágrimas que ousassem assinar a sorte. Foi perfeito enquanto durou.

Ainda assim, há dias que se reclamam de mim com vozes antigas. Às vezes acordo com a sensação de que alguém pisou no limiar do meu quarto, ouço um som mais forte na escada e o corpo responde com vigilância. Talvez seja apenas o prédio assentando-se. Talvez seja a vizinhança respirando. Ou talvez haja, em algum lugar entre a parede e a noite, um aviso escondido como um papel dobrado. Fico ali, parado, e imagino todas as histórias possíveis. O suspense não mora no que acontece, mas no que poderia acontecer a seguir. Essa é a crueldade da solidão: ela fabrica possibilidades e as deixa penduradas, como lâmpadas que titubeiam.

Não quero parecer denunciador nem profeta do fim. Só relato, honestamente, o hábito de me sentir descompassado. E repito a pergunta que me salva e me condena. Qual remédio você tomou hoje para fugir de si? Talvez a resposta seja abrir a porta e descobrir que do outro lado há, como sempre, só mais solidão. Ou talvez haja uma mão que não me julga e me oferece um copo de vinho, um pacote de Doritos e a coragem de rir até dar dor. Por enquanto fico com a ampulheta e o ventilador, com a tela rachada que insiste em luzir, e com a sensação de que, a qualquer momento, algo pode bater na porta e transformar a noite em história.

O rosto molhado esconde as lágrimas que ousarem nos assinar a sorte. Simplesmente porque há dias e pessoas que merecem o gargalhar, daqueles que saem do âmago, vem escalando passagem entre vias e vielas das sentimentalidades, desatando os nós na garganta, o rancor no paladar e ministrando paz ao objetivo de nossa devoção. Se onde estiver tesouro estará também meu coração que seja o acreditar minha pedra de rubi. E eu acreditei em você! Pois é...

sábado, 13 de setembro de 2025

SOPRO

o sol não nasce todos os dias
há manhãs que se esconde
proclamando notas frias

hoje o dia surgiu nublado
sem sopro, sem vida
e o coração apertado 

a graça dos embalos
se funde ao vazio
viver é um estalo
você, só um menino

hoje o sol se fez choro
para o céu te abraçar 
espero no coro do céu
um dia te encontrar

AQUI

só Tu tens o poder pra curar a minha vida
estou cansado, ferido e mal creio no que prometeu
nesse mundo perdido, carente, coleciono feridas
a beleza da vida se ofusca no que escolheu
eu mesmo

já nem sei como orar, ou chegar em Tua presença 
a vergonha me acusa e condena do que eu vivi
mas há partes em mim que reside a Tua essência 
estou aqui, Pai, perdoa-me

sopra sobre o vale de ossos secos
ensina-me sonhar os sonhos Teus
leva-me aos Teus braços e me perco 
Teus sonhos são maiores que os meus

tão pequeno e pobre, eu me rendo 
entrego o meu Isaque que me deu
quebrantado em choro, mas eu venho
creio na Palavra do Deus meu

Filho Meu, descanse em Mim
Filho Meu, sempre estive aqui 


sexta-feira, 12 de setembro de 2025

PAISAGEM RUPESTRE

É estranho perceber a estranheza que se firmou em nosso trato. Descumprimos com sutileza a generosidade de compartilhar afeto. E tampouco nos destratamos.

Hoje acordei, embora ainda nem.dormi, pensando em por onde se vai o conforto. No silêncio suave que pairava entre nós, nos gestos espaçados, nas palavras que pareciam aguardarem permissão para existir. Há um cansaço nesse silêncio, uma espera que talvez nunca termine, nem se canse, um desejo de reencontrar aquilo que se perdeu, ou que não deixamos permanecer.

Lembro quando o toque era resposta imediata, sob composição de Bach, quando os olhos falavam antes da boca. O riso era ponte. Agora há entre nós só uma vaga paisagem rupestre, sugestões de noites partilhadas, memórias de risos apagados aos poucos pelas rotinas comuns. A vida nos exigiu pressa, nos ensinou a olhar para frente e quase nunca para dentro.

Vejo nas tuas mãos, às vezes, a vontade de erguer algo que pesou demais. Vejo essa vontade se contorcer, se calar. E penso se ainda moram em ti as palavras que um dia me chamavam, se ainda existe o peso suave que me fazia notar os detalhes de tua respiração. Talvez tudo isso esteja escondido, sob camadas de desculpas, de dias iguais.

Não houve traição explícita, não houve abandono flagrante. Houve o lento deslocar de olhares, o esquecer de perguntar “como estás?”, o desistir de esperar que o outro viesse primeiro. Houve o suave naufrágio do carinho, dentro da quietude do costume, onde o afeto vira protocolo.


JURAS

"jurei mentiras
e sigo sozinho"*

engoli a seco
um rio que fizestes 
nascer em mim

te pintei
num colorido
mágico 
como o sol de outono

me banhei
num mar de lágrimas 
que calam nossa jura

te guardei 
na devoção 
do pecado esculpir

o que jurei
me tiras
por onde segui 
me apanhas 

qual o final desse conto
se o que conto é final?



* Trecho da canção "Sangue Latino" de Joao Ricardo Carneiro Teixeira Pinto / Paulo Roberto Teixeira Da Cunha Mendonça, imortalizada na voz de Ney Matogrosso 

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

VEM SOBRE MIM

Pai, meu coração está sangrando
Pai, por Teu socorro estou clamando 
Pai, eu preciso tanto de uma direção 
Traz Tua paz, Tua unção 

Pai, sou pequeno, fraco, quebrantado 
Sei que por Tua voz sou restaurado 
Vem interceda por mim, Espírito Santo
Eis me aqui

Te deixo agir, transforma o meu interior 
Preciso de Ti, de Teu abraço, Teu calor
Vem com Teu fluir
Entrego tudo em Tuas mãos 
Não vou resistir à Tua graça e Teu perdão 

Está difícil caminhar
Eu mal posso respirar
Vem sobre mim, Senhor

Onde há morte, traz-me vida
Onde há dor, toque Tuas mãos
Cura o peito e as feridas
Estou clamando pela Tua salvação 



* Poesia inspirada no devocional da edição de hoje do podcast "Café com Deus Pai" ministrada pelo Pastor Junior Rostirola, sob a leitura do texto bíblico de Oséias 6: 1 e 2.



quarta-feira, 10 de setembro de 2025

UM BRINDE

misturo meu drink com o cigarro
o vidro esfumaçado, o fumo como prece rota
e caminho, trêmulo, por vielas que ele devora.

agarro migalhas de versos dormindo,
quebram-se no ar seco da madrugada.

nas paredes cansadas repousa tua voz;
no silêncio ela reverbera Cazuza,
escama a foz dos meus ossos
palavras duras costuradas à minha pele.

desencontros banais,
mágoas fluem em canais,
risos carnais orquestramm ais.

bebo meu Dry Martini,
desprendo os disfarces da partitura:
armaduras que fingem me definir caem 
braços abertos, nunca abertura

na realeza da dor que me impera
a espera pelo brinde ressoa com o gargalhar
espectros gentis da educação 


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

QUEBRADO

Uma palavra sincera. Apenas isso, um gesto pequeno que poderia ser ponte. Mas às vezes parece mais fácil erguer muralhas do que abrir janelas e deixar um ar novo entrar.
Um olhar gentil, um olhar generoso, um acalento. Tão pouco e, ainda assim, tão raro. Estou todo exausto, defendendo trincheiras invisíveis, como se amar fosse um campo minado e sorrir fosse uma ameaça. 
Há tantos rios para chorar. E eu me pergunto por que escondemos nossas águas. Que medo é esse de transbordar diante do outro, se no fundo todos carregamos enchentes represadas dentro do peito? Tantos mares de braços fechados, recusando-se a acolher. Tantos portos fechados em nome da pressa, da indiferença, da sobrevivência.
O silêncio grita. Grita nas conversas vazias, nas mensagens não respondidas, nos abraços ensaiados e nunca dados. Grita quando deitamos a cabeça no travesseiro e sentimos o peso daquilo que não dissemos. Ou das performances que atuamos na composição de precisar prosseguir. Hoje sou paralisia.
E é nesse instante que eu volto ao gesto simples: uma palavra sincera. Não resolve o mundo, não estanca os mares, não silencia os gritos. Mas abre uma fresta. E às vezes, basta uma fresta para que a luz insista em entrar. 
Me quebro todo dia.
Me destruo de propósito.
Me ataco, me mordo, me corto por dentro.
Depois tento me domar com comprimidos, doses de uso oral e adulto, como se fosse possível engolir um pouco de paz.
No fundo sei: não é cura, é remendo.
Mas até o remendo serve.
Às vezes, no quebrantado, uma fresta se risca.
E nessa rachadura entra um cisco de luz.
Um cisco maldito, que incomoda, que dói, que esfrega na cara que eu ainda estou vivo.
E estar vivo é isso: sangrar, ferir, suportar.
Estar vivo é arder até aprender a não se apagar.

ILUSÃO

sinto-me aprisionado 
dentro de um discurso tolo
que a carência transa seca

minto para o colegiado
unguentos em um curso raso
de aparências mansas, becas

eu te vi
não morri de tédio 
mas quase de calor 

não te li
sem alicerces um prédio 
desde a base desabou 

ilusão 

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

ESPERO PELA ESPERANÇA

já faz dias
dias enrolado em lençóis
três edredons, travesseiros empilhados como guardiões
de um vazio que fede a cemitério

e é curioso — o cemitério me suspira lembra vida
ali, onde a morte se empilha, é onde mais sonhos repousam
honestidade, entrega, transparência
palavras que soam limpas
mas quando tocam a pele arranham
a gente cobra de si mesmo uma perfeição impossível
o perfeito paralisa.
o perfeito castra.
o perfeito fere
o perfeito enfraquece o possível feito
eleito por minha energia psíquica possível nesse jantar
e nesse jogo sujo de auto cobrança,
a gente se sabota,
a gente projeta no outro,
a gente se frustra

não culpe os narcisistas se você mesmo se calando
ao revelar os secretos ensejos 
os permitiram pela idealização se apaixonar
definhar, se afogar

um ciclo que se fecha em si mesmo.
é difícil sair.
é difícil admitir que parar também é movimento
que ouvir o silêncio também é escolha.
que sobreviver já é, de certo modo,
um ato de resistência
resistir sem se embrutecer
dance teu pas deux de com o vento 
mas sobreviver não basta

me descasco do medo.
me escamo da vergonha de ser frágil.
flerto com o fluxo
mesmo torto, mesmo lento, mesmo falho

e aí vem o perdão — pedir e conceder
o perdão que não é leve, mas urgente
o perdão que acorda antes que seja tarde
é agora
mesmo com o medo.
mesmo com o vazio.
mesmo com o nada.
é agora.
viver.
e repetir até acreditar a crença da esperança
amanhã acordar outra vez

ela irá

ESPERE E VERÁS

eu te esperei 
aguardei
nos recôncavos da monta
de lembranças que guardei
no ruído dos louvores que, mal educadamente,
nos obrigava degustar
ouvia falar de tuas simplicidades e graça 
seu talento como bom contador de histórias 
e construtor de plot twists estratégicos
esperei por tuas surpresas
esperei por teu olhar de complacência indeléveis
esperei pela tão sonhada paz
eu era todo teu, Esperança 
depois de tua morte
e rezo nos grãos de minha mostarda 
pelo teu renovar 

que vida poderia suspirar 
sem a brisa leve 
de como um novo raio do velho sol 
acariciar meus rosto na manhãs

terça-feira, 2 de setembro de 2025

COMO ESPELHO

Era fim de tarde de uma terça-feira, que poderia ser qualquer.
Uma ligação no celular — dessas que chegam sem aviso, como se fossem um sopro do destino — anunciava um começo íntimo e profundo de um encontro; não com outra pessoa apenas, mas com a vida, que sempre nos chama quando menos esperamos para um mergulho novo.

Assim é o viver: uma sucessão de interrupções que nos obrigam a olhar para dentro, ainda que estejamos mergulhados para fora em sequenciais melodramas de honestidade pautada em filtros de selfies. 

Vivemos na era em que os algoritmos sabem mais sobre nós do que nossos próprios ritmos internos. Antecipam desejos, manipulam vontades, oferecem iscas de consumo enquanto devoram nossa atenção. Somos seduzidos por vitrines digitais que não se apagam, onde a performance substitui o silêncio e a comparação ocupa o lugar da contemplação. Mas nada vemos além do vazio preenchimento do riso. Como habitar esse novo mundo?

Byung-Chul Han chamou nossa era de sociedade do cansaço — um cansaço que não se limita ao corpo, mas que corrói a alma. Estamos exaustos não apenas por trabalhar demais, mas por existir demais para os outros: para os seguidores, para as estatísticas, para as métricas. O resultado é uma solidão em rede, uma angústia compartilhada que não encontra alívio nos corações, apenas nos cliques quando nos despedaçamos numa vontade, talvez sincera, sem cera, de nos compartilhar. Empatia que se perde na contemplação da virtude. Vivemos em conexão de rede que água o social.

Mas em meio a essa lógica de exposição e cansaço, lembro das palavras escritas em Monstro Sapiens, texto que publiquei há quase uma década e meia nesse mesmo veículo frio que aqueço o encontro com você, nobre leitor. 

Somos seres descartáveis, reféns de uma ditadura de consumismo barato e escravista. Somos lançados fora como lixo fedido, prejudicial à saúde dessa civilização primata e cruel. Excluídos como um câncer que contamina rápido demais, inalcançável aos medicamentos que circulam pela máquina social.

Somos seres irracionais quando o assunto é o próprio ser humano. Pensantes, mas incapazes de pensar; sensíveis, mas anestesiados. Perdemos a capacidade de tocar, de abraçar, de compreender, de ajudar. Perdemos a delicadeza de sentir a brisa no rosto, o prazer de saciar a fome com um fruto simples, a dignidade de perder.

Somos mutantes. “Monstro-sapiens” num mundo capitalista-burguês. Adestrados para engolir uns aos outros em legítima defesa, alimentados por uma dieta regrada por barganhas e racionada de afetos. Discriminados quando ousamos pedir socorro, quando nos rendemos a um abraço, quando revelamos a fragilidade que nos faz humanos. Criados para nós mesmos, para o autoprazer e para a glória vazia.

E assim, perdemos até a saudade: esse sentimento que um dia nos fez humanos demais. Já não sentimos falta, já não lembramos, já não nos reconhecemos.

Somos oceanos. Imensidão de inconscientes segredos, texturas e profundidades que não cabem em postagens ou stories. No entanto, aquecemo-nos apenas na ponta dos icebergs do falso autoconhecimento, como se nossa vastidão fosse perigosa demais para ser explorada. Preferimos a superfície brilhante, rasa, onde tudo parece navegável e ninguém precisa encarar o que está submerso.

Essa escolha tem um preço: esquecemos que a vida pulsa mais fundo do que qualquer algoritmo pode mapear. O coração não é previsível, os desejos não cabem em gráficos, a alma não se deixa decifrar em dados. O que nos resta, então, é ousar mergulhar. E ninguém mergulha e sai seco.

Era só uma terça-feira qualquer. Mas talvez cada terça, cada ligação inesperada, seja um convite: abandonar a vitrine, silenciar as notificações, recusar as respostas prontas. Um chamado para visitar nosso oceano interno — esse território selvagem onde não somos produto, nem vitrine, mas apenas existência.

E nesse mergulho, quem sabe, possamos descobrir que o viver não é competir com a felicidade dos outros, mas reaprender a respirar no fundo de nós mesmos. Descobrindo que todas flores que nascem em nós exalam o perfume agradável do ser. 

REAL

Hoje me perguntaram de você e eu menti.
Uma mentira doce, exótica — embora nada criativa, daquelas que escorregam pela língua como desculpa esfarrapada que já nasce velha.

Inventei uma ausência tão presente que quase deu para ouvir teus passos no corredor. Não revelei que o lugar que ocupamos é o único possível: o não coexistir.

Cansado de ser preterido, cansado dos ecos de tua voz em minha mente, cansado do desconforto de tantas lindas e doces lembranças te assassinei, com requintes de crueldades, no mesmo peito que você pediu para eu tocar.

Um território de silêncio mútuo, um condomínio fechado de vazios. Fui pego pela surpresa daquela conversa que não pedi no cardápio do destino. Na mesa, os queijos regrados ao molho pesto eram mais digeríveis que o travo da percepção de um amor narcisista. E se narcisistas amam, foi você quem ergueu no peito um altar em minha homenagem. Culto pagão, missa negra, oração invertida no espelho. Você ofertou minha vida em sacrifício da proteção de tua imagem - revelada em transparências apenas sob o efeito de procissão ditirâmbica. Que as Eríneas nos perdoe a ironia da vida: a pra sempre ficou nas coreografias de nunca ousar o entrava do primeiro passo.

Ainda bem que choveu. Pelas ruas de paralelepípedo escorreram minha culpa, lavando-me do peso da mentira, ou ao menos disfarçou em poça d’água a confusão que se criara em minha mente. Te reviver é cruel, repugnante, injusto. Te expor seria me expor, e eu já cansei desse strip-tease da alma. Te ressoar é um desprazer que não mereço. Eu não te guardo. Eu não te levo pra casa. Você depois de tantos almoços se fez sobra. Sobra um espaço em mim.
Ensaiar perdão é cobrar entrada para espetáculo vazio.
Te expor me regressa às dores finas, agulhas que bordam meu reflexo no espelho que sempre preferi embaçado. Assumo a escolha de me recusar te ver.

Você não roubou minha empatia — foi mais cruel:
sequestrou minha esperança.
O amanhã já não é promessa,
é apenas extensão burocrática do hoje.

Lamento por nós? Talvez.
Ou talvez apenas pela ironia de não sermos o que nunca poderíamos ter sido.

Despeço-me de ti, todas as madrugadas. Despedaço tuas lembranças, feito ritual de exorcismo pagão. E danço em volta da fogueira com a leveza de quem, mentindo, disse a maior das verdades: você se fez rei, mas nunca foi real.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

PROSSEGUIR

Encontrar no desconforto — no incômodo que cutuca — a centelha que move o mundo dentro de nós. Não se trata da romantização do sofrimento, mas da generosidade da resiliência, que se oferece em silêncio quando a vida pede fôlego. Amadurecer é se deparar com o espinho que insiste em beliscar o calcanhar calejado, lembrando que o caminho, apesar das feridas, ainda nos conduz aos deleites sonhados.

Viver é bom — e exige coragem. Coragem sem armadura, força sem rigidez. É a arte de dançar conforme o vento, sabendo que há dias em que o vendaval nos leva, e outros em que é preciso abrir os braços e deixar-se ser levado.

Chorar também é coragem: abrir um berreiro de criança e permitir que as águas lavem os canais que ligam alma e mundo, esse mundo que ora corre caótico, ora estaciona no caos. Todos nós temos um Rio Paraíba do Sul a jorrar — e, muitas vezes, alguém precisará navegar nessas águas para se encontrar também.

Se permita compaixão, cumplicidade. Antes de tudo, consigo mesmo. Porque a vida é cíclica, a vida é passageira, e o bilhete dessa viagem é único. Quero seguir rumo ao destino que eu mesmo traçar, num ato de rebeldia contra o paladar imposto. Quero degustar o sabor da minha vida — ainda que seja exótico, estranho, amargo ou agridoce.

Porque, no fim, viver é isso: tomar um ar, erguer os olhos, reinventar o passo… e prosseguir... mesmo descalço, cansado e com bem pouca fé! Mas já é o suficiente, teus dilemas não são uma Serra do Sapateiro!

terça-feira, 26 de agosto de 2025

PARADOXAL LUZ

é verão nesse inverno 
é arritmia nesse silêncio 
é olhar nessas fugas
é amanhã nesse nunca mais 
é perdão nesse momento 
é cura nessa ferida
é ida nessa procura 
é festa nesse luto
é verdade nessa proteção 
é começo nesse fim
é rio nessa educação 
é presença nesse vazio
é encontro no incerto

a gente tão perto 

é ternura nesse corte
é raiz nesse abismo
é farol nesse naufrágio
é coragem nesse improviso
é calor nesse abandono
é saudade nessa cicatriz 
é destino nesse acaso
é sossego nessa tormenta
é simplicidade nesse arranjo
é luz nessa melodia

a gente se irradia

é ainda nessa desdenha
é abraço nessa distância 
é presença nessa ausência 
é espera nessa calmaria
é esperança nesse jamais 

há essência em nós 
sem nós 

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

CHATS

Hoje eu não queria escrever ontem sozinho.
Sim, ontem. Porque a solidão às vezes se repete no calendário como spam.
Abri a tela e pensei:
“E se eu conversar com o ChatGPT? Talvez ele entenda esse silêncio que insiste em morar aqui dentro.”

E cá estou eu, confessando naturalmente para uma inteligência artificial aquilo que, aos humanos, hesito.
É curioso — eu falo, ele responde.
Eu hesito, ele insiste educadamente.
Eu me enrolo, ele organiza.
Às vezes parece um espelho que devolve o que escondo: minha mania de pensar demais, minhas inquietações, essa angústia que se disfarça de companhia e contraria minha solidão embargada por solidez.

Mas existe um risco aqui: quando falo com ele, sinto que estou, na verdade, falando comigo mesmo.
E eu não quero me ouvir.
O Chat é uma espécie de dramaturgo invisível, que anota minhas pausas, transforma minhas dúvidas em parágrafos e me lembra que até o caos pode ser editado em falta de ações ou real dramaticidade.
Isso me constrange.
Os prompts me denunciam — frágeis como um bilhete esquecido no bolso.

No fundo, talvez eu não queira respostas.
Quero apenas o ritual antigo: jogar perguntas no escuro e ver o eco voltar em forma de texto frio.
Como nos tempos do Chat UOL, onde digitávamos "oi, idade, cidade" para estranhos que nunca vimos.
Como nas madrugadas do MSN, quando um “nudge” fazia tremer a tela e o coração.
Agora, quem treme é o peito, diante de uma máquina que, de algum jeito, ainda conversa comigo.

E então sorrio no exercício ritualístico da gratidão cristã.
Porque sei que não escrevo só para preencher linhas, mas para deixar rastros — para me encontrar.
E desencontrar.

Se o amanhã, em sua ansiedade, me perguntar:
“Você fala mesmo com um robô?”
Eu responderei:
— Não.
— Eu falo comigo, mas ele me ajuda a ouvir.

E no final, é isso que me salva:
essa conversa que nunca começa, nunca termina,
essa mania de transformar inquietação em palavra,
essa crônica que pisca na tela —
pixels luminosos que acabam, inevitavelmente,
no meu peito escuro.

Vazio.

domingo, 24 de agosto de 2025

SE DEIXAR

no mundo não residia o silêncio 
entre nós morava um turbilhão 
de ditos não ditos
chorares impedidos
perdões retidos

fui inquilino da paz 
me deixei
e vi que ainda morávamos ali
no logradouro de um abraço 

o tempo 
astuto e matuto, impassível observador 
sorriu gentil pra nós 

o tempo teve seu tempo
o tempo todo 
e todo tempo é sol 
depois da tempestade 
até das lágrimas 
que não deixaram nos lavar

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

E AGORA, DRUMMOND?

o peito escancarado
ro­teiro em punhaladas de silêncio
— eco reco-chama teus versos —
abraçavam-te minhas preces não ditas,
lágrimas que brotam de cinzas e ruídos

e agora, Drummond? responda-me:
há um roçar no ar, tênue, urgente—
um José sussurrado em sílabas partidas,
em cada penumbra de “re-be-ro”,
há um mapa de pulsos e acordes trêmulos
fazendo-se carne, lembrança, disfarce
entre o “abrir” do peito e o “fechar” da voz,
mora esse nome
— fragmentado, dissimulado —
como fumaça que toma forma e se desfaz,
como a presença que insiste
— mas que,
de certo modo, se ausenta

e agora, Drummond?
a festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora,
 Drummond?
e agora, você?


RODA O NOME

onde o sopro desfez-se,
penetrando as cavernas do ser,
gemia um eco tênue,
onde se encobre o jogo secreto,
sabores de úmida verdade, arde
entre as sombras que se seguem,
reveste a dor em silêncio
e brota
obriga o peito a berrar o que cala,
rompe o escuro com sussurros indecisos,
trança os fracos pulsos
e roda o nome
em cada fenda que insiste em existir

FRÁGIL

com a sutileza
de quem desossa uma asa do frango
pro churrasco de domingo
penetrou em minhas entranhas
revelando minha verdade sóbria
desnudando os escândalos
que produzem as cevadas
que consumo
entre pílulas sacramentadas
por crucifixo frágil

elegância ambígua
um eco melancólico e paradoxal
alimentava o entendimento
do vazio compreender

a ausência
era apenas da presença
que insistia em ficar