Mais uma vez, falho na tentativa de me deitar cedo. A claridade invasiva da tela do meu celular todo quebrado recorta o teto em linhas irregulares, lembrando-me das quedas que ele sofreu sob a minha teimosia taurina por não usar película ou capa. Às vezes me pergunto se não há, em algum lugar inconsciente, um prazer secreto nessa corda bamba que escolho caminhar. Talvez a rachadura no vidro seja um mapa.
Tenho pensado muito, nos últimos dias, sobre os pilares da vida, ao menos os que ainda sustentam a minha. É repetida a constatação de que a humanidade está emocionalmente enfraquecida, débil, doente, e mesmo assim assume pseudônimos de heroísmo que nem a si mesma convencem. E quem vence nesse teatro de máscaras? Não sei. Pergunto-me qual remédio você tomou hoje para fugir de si. Eu tomei o que resta da paciência e mais um comprimido que deveria embalar o sono, mas que apenas me deixou acordado, quatro horas depois, com as sinapses articulando manobras radicais.
Observo os bares cheios pela janela alheia das redes sociais. Há uma efervescência de alegria, celebração, algo que parece não honesto em sua essência. Meu Deus, quem sou eu para julgar o júbilo alheio? Ainda assim, vejo em tudo isso uma antropologia de vontades: olhamos o outro como se estudássemos uma espécie em extinção ou em expansão. Por que não antropofagia, me pergunto, já que nos devoramos todos os dias numa carnificina social, virtual, sexual, econômica? Comer o outro tornou-se ritual sutil.
Queria ter um amigo para sentar no chão da sala, abrir uma garrafa de vinho e me perder entre a cozinha e a sala, preparando algo para servir ou mesmo petiscar um pacote de Doritos sem a obrigação de justificar qualquer tristeza. Talvez, se eu tivesse percorrido os 48 quilômetros de asfalto negro, teria chegado a algum tipo de festa de viver. Ontem alguém me disse que estava feliz. Eu sorri por dentro e reconheci a velha sensação de fraude. Ainda não dei certo. Ainda não alcancei o mínimo para sorrir com a alma. Não me interprete como ingrato. Só procuro uma cifra íntima de completude que não cabe nos bolsos.
O ventilador gira com a mesma insistência de sempre, hélices que abafam os passos de quem transita as escadas logo atrás do quarto onde agora repouso. É curioso perceber que o ruído tem corpo e não tem pele. Ele sopra contra a parede, porque frio já basta o meu coração. E a parede, que sussurra? Talvez conte as histórias que tive vergonha de nomear. Talvez guarde provas de todos os boicotes e sabotagens que me afetam, sentenciando um protocolo lento de autodestruição. Sou uma bomba relógio armada por ressentimento e, ainda assim, não explodo. Apenas fico ali, tic tac, observando.
Sinto a presença doce de um querer que amarga minha boca virgem de certezas. Sinto e ressinto, como se o mesmo sentimento tivesse pernas e voltasse para me perseguir. O recinto se enche de uma escuridão que nem a dama da noite parece capaz de dissipar, mesmo com o incenso pegando fogo e se consumindo em espirais. Sou incêndio e nada queimo, como se cargas de sensibilidade estivessem defasadas no meu circuito.
Lembro de abril da infância, quando a vida tinha alturas e quedas que não matavam. Brincava na roda gigante e prometia não temer a altura, nem a proximidade com o chão. Hoje eu contemplaria a vista e guardaria nas retinas todas as pessoas que cruzassem meu olhar. Isso é vida, pensei sempre. Hoje, ser capaz de me movimentar, remar um pouco, já é vitória. Uma amiga me disse para não remar para longe dela. Havia poesia honesta naquele pedido e aceitei o desafio. Fomos ao Paraíba do Sul, banhamos-nos como crianças, e o rosto molhado serviu para esconder as lágrimas que ousassem assinar a sorte. Foi perfeito enquanto durou.
Ainda assim, há dias que se reclamam de mim com vozes antigas. Às vezes acordo com a sensação de que alguém pisou no limiar do meu quarto, ouço um som mais forte na escada e o corpo responde com vigilância. Talvez seja apenas o prédio assentando-se. Talvez seja a vizinhança respirando. Ou talvez haja, em algum lugar entre a parede e a noite, um aviso escondido como um papel dobrado. Fico ali, parado, e imagino todas as histórias possíveis. O suspense não mora no que acontece, mas no que poderia acontecer a seguir. Essa é a crueldade da solidão: ela fabrica possibilidades e as deixa penduradas, como lâmpadas que titubeiam.
Não quero parecer denunciador nem profeta do fim. Só relato, honestamente, o hábito de me sentir descompassado. E repito a pergunta que me salva e me condena. Qual remédio você tomou hoje para fugir de si? Talvez a resposta seja abrir a porta e descobrir que do outro lado há, como sempre, só mais solidão. Ou talvez haja uma mão que não me julga e me oferece um copo de vinho, um pacote de Doritos e a coragem de rir até dar dor. Por enquanto fico com a ampulheta e o ventilador, com a tela rachada que insiste em luzir, e com a sensação de que, a qualquer momento, algo pode bater na porta e transformar a noite em história.
O rosto molhado esconde as lágrimas que ousarem nos assinar a sorte. Simplesmente porque há dias e pessoas que merecem o gargalhar, daqueles que saem do âmago, vem escalando passagem entre vias e vielas das sentimentalidades, desatando os nós na garganta, o rancor no paladar e ministrando paz ao objetivo de nossa devoção. Se onde estiver tesouro estará também meu coração que seja o acreditar minha pedra de rubi. E eu acreditei em você! Pois é...
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