segunda-feira, 16 de junho de 2025

EU REMO

 O açoite me fez carne

E minha carne virou memória.

Nos porões fétidos, úmidos

— onde se abafam nomes —

meu grito apodreceu junto aos teus galardões


Cicatriz que canta em silêncio

nos porões da tua história.

Meu corpo é como a noite

— denso, inteiro, sem clemência.

Esconde as dores que gritam,

e teme o dia com prudência

No leme rompido da minha existência,

sou navio sem rota, mas sigo em resistência

Mercadoria sem nota e de valor vilipendiado,

mas meu passo é tambor — jamais silenciado


Navego os mares que jorram os olhos,

sal feito do sal que me fizeram engolir

Cada lágrima é um remo

cada afogamento, um porvir

Velo corpos ao mar, mães que amamentam secas,

pelos reis que perdem rainha,

guerreiros que desconhecem a luta,

cultura e idiomas que não mais transam

pelos santos quebrados pelos murros,

terreiros queimados, orixás em desterro —

mas o tambor ainda pulsa no escuro.

Esperança a esverdear — quem me dera ser preta


De suas raias mães rasgam a doçura,

Abayomi para as crianças

sementes entre as tranças nos cabelos 

Nosso Dom na tortura: é manter-se duras

e na malemolência requebrar os quadril 


Oh, Colombo, por que de tanta infâmia?

Remo em vielas, em ruas, esquinas,

navego em lágrimas, gritos e sinas.

Eu remo, me tremo na coragem de sobreviver —

Oxalá, meu Deus, saborear o viver.


Renego a graça de me chamar de "ti",

pois não me vês, não me sabes.

Tua língua nunca soube meu nome

Tua boca nunca caberia meus abismos.

Nem teus sonhos as estrelas de lá 


Invoco meus deuses no ar que choro,

Oxum, Iansã, Nzinga e Dandara.

Meu peito é quilombo,

minha alma: espada rara.

Toda dor tem um peito.

Todo preto não tem um sentir.


Mercadorias lançadas ao relento —

som lento ressoa no corpo: tambor a ruir.

Ainda 'stamos em pleno mar,

em nau errante que cravam as favelas.

Senhor dos desgraçados, em tua ira rasga as velas!

E esqueça o mar — essa festa impura que tribupia.

Que reste a terra — onde a dor se costura

com a fibra da luta, e a alma não esfria.


Eu remo.

Contra a corrente do esquecimento,

pelos filhos sem parentesco,

e cultuar sem terras.

Remo contra o naufrágio da cor,

contra os olhos que me negam,

ou as câmeras que me cercam.

Remo pelo espelho que me deixou sem flor

e pelo odor de morte


Temo esse mundo de horror.

Já cansada estou de ser forte.

Temo por esse submundo de pavor

Já não sei se o inferno é aqui

Ou certo estão os que celebram a sorte


Nenhum comentário:

Postar um comentário