Vivemos na era em que os algoritmos sabem mais sobre nós do que nossos próprios ritmos internos. Antecipam desejos, manipulam vontades, oferecem iscas de consumo enquanto devoram nossa atenção. Somos seduzidos por vitrines digitais que não se apagam, onde a performance substitui o silêncio e a comparação ocupa o lugar da contemplação. Mas nada vemos além do vazio preenchimento do riso. Como habitar esse novo mundo?
Byung-Chul Han chamou nossa era de sociedade do cansaço — um cansaço que não se limita ao corpo, mas que corrói a alma. Estamos exaustos não apenas por trabalhar demais, mas por existir demais para os outros: para os seguidores, para as estatísticas, para as métricas. O resultado é uma solidão em rede, uma angústia compartilhada que não encontra alívio nos corações, apenas nos cliques quando nos despedaçamos numa vontade, talvez sincera, sem cera, de nos compartilhar. Empatia que se perde na contemplação da virtude. Vivemos em conexão de rede que água o social.
Mas em meio a essa lógica de exposição e cansaço, lembro das palavras escritas em Monstro Sapiens, texto que publiquei há quase uma década e meia nesse mesmo veículo frio que aqueço o encontro com você, nobre leitor.
Somos seres descartáveis, reféns de uma ditadura de consumismo barato e escravista. Somos lançados fora como lixo fedido, prejudicial à saúde dessa civilização primata e cruel. Excluídos como um câncer que contamina rápido demais, inalcançável aos medicamentos que circulam pela máquina social.
Somos seres irracionais quando o assunto é o próprio ser humano. Pensantes, mas incapazes de pensar; sensíveis, mas anestesiados. Perdemos a capacidade de tocar, de abraçar, de compreender, de ajudar. Perdemos a delicadeza de sentir a brisa no rosto, o prazer de saciar a fome com um fruto simples, a dignidade de perder.
Somos mutantes. “Monstro-sapiens” num mundo capitalista-burguês. Adestrados para engolir uns aos outros em legítima defesa, alimentados por uma dieta regrada por barganhas e racionada de afetos. Discriminados quando ousamos pedir socorro, quando nos rendemos a um abraço, quando revelamos a fragilidade que nos faz humanos. Criados para nós mesmos, para o autoprazer e para a glória vazia.
E assim, perdemos até a saudade: esse sentimento que um dia nos fez humanos demais. Já não sentimos falta, já não lembramos, já não nos reconhecemos.
Somos oceanos. Imensidão de inconscientes segredos, texturas e profundidades que não cabem em postagens ou stories. No entanto, aquecemo-nos apenas na ponta dos icebergs do falso autoconhecimento, como se nossa vastidão fosse perigosa demais para ser explorada. Preferimos a superfície brilhante, rasa, onde tudo parece navegável e ninguém precisa encarar o que está submerso.
Essa escolha tem um preço: esquecemos que a vida pulsa mais fundo do que qualquer algoritmo pode mapear. O coração não é previsível, os desejos não cabem em gráficos, a alma não se deixa decifrar em dados. O que nos resta, então, é ousar mergulhar. E ninguém mergulha e sai seco.
Era só uma terça-feira qualquer. Mas talvez cada terça, cada ligação inesperada, seja um convite: abandonar a vitrine, silenciar as notificações, recusar as respostas prontas. Um chamado para visitar nosso oceano interno — esse território selvagem onde não somos produto, nem vitrine, mas apenas existência.
E nesse mergulho, quem sabe, possamos descobrir que o viver não é competir com a felicidade dos outros, mas reaprender a respirar no fundo de nós mesmos. Descobrindo que todas flores que nascem em nós exalam o perfume agradável do ser.
Amei
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