sexta-feira, 22 de novembro de 2024

As marés da vida


Na periferia de uma cidade interiorana nos anos 80, Dalcy e Rubens, dois meninos de mundos opostos, descobrem que as barreiras impostas pela sociedade podem ser vencidas por um laço genuíno e resiliente. Dalcy, negro e filho de uma empregada doméstica, cresce em um ambiente onde a escassez e a dureza da vida são companheiras constantes. Inteligente e curioso, ele encontra na imaginação e nas brincadeiras sua forma de escapar das limitações impostas por sua realidade. Rubens, por outro lado, é o primogênito de uma família rica, habituado ao conforto e às oportunidades. Apesar das diferenças, os dois criam uma amizade sólida, marcada por aventuras e momentos que moldam suas vidas.

Os dois se esbarram pela primeira vez aos cinco anos de idade num desfile cívico evento tradicional da pequena cidade, onde o cap característico de uma escola onde Rubens cai entre a multidão e Dalcy encontra admirado, sendo grosseiramente exigida a devolução por quem se tornará seu grande amigo da vida.

Na infância, a casa de Dalcy era simples, mas cheia de afeto. A mãe, mesmo sobrecarregada pelo trabalho, cultivava no filho valores que iam além da materialidade. Rubens, frequentemente levado pela mãe para atividades sociais, encontrava nos momentos com Dalcy a liberdade de ser apenas um garoto. Certa vez, após uma viagem ao litoral, Rubens trouxe para o amigo uma concha e uma garrafa de água do mar. E disse:

- O mar é como se todo mundo que está nele tivesse mijado na água. -  Palavras estas que despertaram repulsa em Dalcy, mas Rubens também comentou - O mar é como um choro de alegria. A água é salgada feito lágrimas em dias de felicidade. Igual quando você toma leite queimado com biscoitos de nata lá em casa e fica como se tivesse comendo um manjar. - Explicou, tentando traduzir em palavras o que Dalcy ainda não havia experimentado. Esse gesto singelo não apenas fortaleceu a amizade entre eles, mas também plantou no coração de Dalcy o desejo de um dia ver o mar com os próprios olhos, embora ele nunca esse desejo assuma.

Com a adolescência, os caminhos começaram a divergir. Rubens partiu para a capital, onde começou a estudar medicina, enquanto Dalcy permaneceu na cidade natal, trabalhando em uma loja de materiais de construção de um velho turco muito exigente e arrogante. O emprego, embora simples, foi uma oportunidade inesperada de acesso à cultura. Os jornais velhos usados para embalar mercadorias tornaram-se suas primeiras leituras, despertando nele uma paixão por poesia e escrita. Enquanto Rubens vivia a agitação da cidade grande, mulheres, festas, bebidas, Dalcy se dedicava ao trabalho e ao cuidado da mãe, cuja saúde começou a se deteriorar.

A morte da mãe de Dalcy foi um marco doloroso. Mesmo doente, ela continuava trabalhando, e sua partida precoce ocorreu durante uma festa na casa dos patrões, onde essa trabalhava num dia extra na esperança de comprar sapatos novos para o filho. Essa perda reforçou o senso de responsabilidade de Dalcy, que passou a canalizar sua energia na construção de um futuro melhor. Ele acabou herdando a loja onde trabalhava, transformando-a em um negócio próspero, mas seu coração permaneceu reservado, marcado pelas cicatrizes da solidão e das oportunidades perdidas.

Rubens, por sua vez, construiu uma família na capital e frequentemente tentava reaproximar o amigo. Convidou-o para seu casamento, insistiu para que visitasse a cidade, mas Dalcy recusava. A vida o ensinara a não sonhar além do que podia alcançar, e, embora quisesse ver o mar, sempre encontrava razões para adiar o momento. Mesmo assim, a amizade entre eles nunca esmoreceu. Quando Rubens batizou seu primeiro filho, escolheu Dalcy como padrinho. O gesto causou estranheza entre os parentes do médico, em especial da família da gentil esposa, mas reforçou a profunda conexão entre os dois.

Com o passar dos anos, Dalcy tornou-se uma figura de referência em sua comunidade, não apenas pelo sucesso nos negócios, mas também pela generosidade e sabedoria. Ele sempre carregava consigo a concha presenteada por Rubens na infância, um símbolo de memórias felizes e da amizade que resistiu ao tempo. Porém, um dia, a concha se quebrou, marcando simbolicamente a morte do amigo. Rubens, já envelhecido, faleceu na capital. O telefone da loja de Dalcy tocou por várias vezes, mas esse proibia a secretária e atender e também não o fez por longas tentativas da pessoa do outro lado da linha. Era o afilhado querendo anunciar a partida do pai. Com este Dalcy insistiu para que o amigo fosse enterrado na cidade natal, ao lado da família. O que lhe foi atendido depois de muita insistência para que pudesse ele arcar com o translado e sepultamento do amigo-irmão.

Na velhice, Dalcy mantinha o espírito genioso, mas suas memórias estavam sempre vivas. Ele nunca se casou, carregando consigo as marcas de um amor que a sociedade racista lhe negou na juventude. Ainda assim, encontrou na relação com os filhos e netos de Rubens um conforto inesperado. O momento de maior emoção veio quando, já idoso, Dalcy finalmente viu o mar, levado pelo afilhado e seus filhos gêmeos, ainda crianças. Sentado na praia, com um caderno de anotações e a caneta que ganhara do afilhado, ele revivia em pensamentos as aventuras com Rubens.

Dalcy não apenas encontrou o mar, mas também um fechamento simbólico para sua jornada, revelando a força de sua amizade com Rubens, perpetuada pelas gerações seguintes. Compôs uma poesia, e acabou cochilando, sonhando assim com o amigo, que com um violão tocava e cantavam as músicas compostas. Ao ver o padrinho quieto e cabisbaixo o afilhado se desespera, pensando que o mesmo também havia partido. Dalcy desperta com o largo sorriso, sorriso tal que poucas vezes esboçou, se não para esse mesmo amado afilhado desde a infância. Enquanto isso um dos filhos do afilhado o traz uma nova concha, simbolizando a continuidade e a renovação do ciclo de amor e memória.


Um comentário:

  1. Que texto!!!!
    Não tem como não se emocionar!
    Lindo demais 👏👏👏👏

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