Na
periferia de uma cidade interiorana nos anos 80, Dalcy e Rubens, dois meninos
de mundos opostos, descobrem que as barreiras impostas pela sociedade podem ser
vencidas por um laço genuíno e resiliente. Dalcy, negro e filho de uma
empregada doméstica, cresce em um ambiente onde a escassez e a dureza da vida
são companheiras constantes. Inteligente e curioso, ele encontra na imaginação
e nas brincadeiras sua forma de escapar das limitações impostas por sua
realidade. Rubens, por outro lado, é o primogênito de uma família rica,
habituado ao conforto e às oportunidades. Apesar das diferenças, os dois criam
uma amizade sólida, marcada por aventuras e momentos que moldam suas vidas.
Os dois se esbarram pela primeira vez aos cinco anos de idade num desfile cívico evento tradicional da pequena cidade, onde o cap característico de uma escola onde Rubens cai entre a multidão e Dalcy encontra admirado, sendo grosseiramente exigida a devolução por quem se tornará seu grande amigo da vida.
Na
infância, a casa de Dalcy era simples, mas cheia de afeto. A mãe, mesmo
sobrecarregada pelo trabalho, cultivava no filho valores que iam além da
materialidade. Rubens, frequentemente levado pela mãe para atividades sociais,
encontrava nos momentos com Dalcy a liberdade de ser apenas um garoto. Certa
vez, após uma viagem ao litoral, Rubens trouxe para o amigo uma concha e uma
garrafa de água do mar. E disse:
- O mar é como se todo mundo que está nele tivesse mijado
na água. - Palavras estas que despertaram repulsa em Dalcy, mas Rubens também comentou - O mar é como um choro de alegria. A água é salgada feito lágrimas em dias de felicidade. Igual quando você toma leite queimado com biscoitos de nata lá em casa e fica como se tivesse comendo um manjar. - Explicou, tentando traduzir em palavras o que Dalcy ainda não havia
experimentado. Esse gesto singelo não apenas fortaleceu a amizade entre eles,
mas também plantou no coração de Dalcy o desejo de um dia ver o mar com os
próprios olhos, embora ele nunca esse desejo assuma.
Com
a adolescência, os caminhos começaram a divergir. Rubens partiu para a capital,
onde começou a estudar medicina, enquanto Dalcy permaneceu na cidade natal,
trabalhando em uma loja de materiais de construção de um velho turco muito exigente e arrogante. O emprego, embora simples,
foi uma oportunidade inesperada de acesso à cultura. Os jornais velhos usados
para embalar mercadorias tornaram-se suas primeiras leituras, despertando nele
uma paixão por poesia e escrita. Enquanto Rubens vivia a agitação da cidade
grande, mulheres, festas, bebidas, Dalcy se dedicava ao trabalho e ao cuidado da mãe, cuja saúde começou a
se deteriorar.
A
morte da mãe de Dalcy foi um marco doloroso. Mesmo doente, ela continuava
trabalhando, e sua partida precoce ocorreu durante uma festa na casa dos
patrões, onde essa trabalhava num dia extra na esperança de comprar sapatos novos
para o filho. Essa perda reforçou o senso de responsabilidade de Dalcy, que
passou a canalizar sua energia na construção de um futuro melhor. Ele acabou
herdando a loja onde trabalhava, transformando-a em um negócio próspero, mas
seu coração permaneceu reservado, marcado pelas cicatrizes da solidão e das
oportunidades perdidas.
Rubens,
por sua vez, construiu uma família na capital e frequentemente tentava
reaproximar o amigo. Convidou-o para seu casamento, insistiu para que visitasse
a cidade, mas Dalcy recusava. A vida o ensinara a não sonhar além do que podia
alcançar, e, embora quisesse ver o mar, sempre encontrava razões para adiar o
momento. Mesmo assim, a amizade entre eles nunca esmoreceu. Quando Rubens
batizou seu primeiro filho, escolheu Dalcy como padrinho. O gesto causou
estranheza entre os parentes do médico, em especial da família da gentil esposa, mas reforçou a profunda conexão entre
os dois.
Com
o passar dos anos, Dalcy tornou-se uma figura de referência em sua comunidade,
não apenas pelo sucesso nos negócios, mas também pela generosidade e sabedoria.
Ele sempre carregava consigo a concha presenteada por Rubens na infância, um
símbolo de memórias felizes e da amizade que resistiu ao tempo. Porém, um dia,
a concha se quebrou, marcando simbolicamente a morte do amigo. Rubens, já
envelhecido, faleceu na capital. O telefone da loja de Dalcy tocou por várias
vezes, mas esse proibia a secretária e atender e também não o fez por longas
tentativas da pessoa do outro lado da linha. Era o afilhado querendo anunciar a
partida do pai. Com este Dalcy insistiu para que o amigo fosse enterrado na
cidade natal, ao lado da família. O que lhe foi atendido depois de muita insistência
para que pudesse ele arcar com o translado e sepultamento do amigo-irmão.
Na
velhice, Dalcy mantinha o espírito genioso, mas suas memórias estavam sempre
vivas. Ele nunca se casou, carregando consigo as marcas de um amor que a
sociedade racista lhe negou na juventude. Ainda assim, encontrou na relação com
os filhos e netos de Rubens um conforto inesperado. O momento de maior emoção
veio quando, já idoso, Dalcy finalmente viu o mar, levado pelo afilhado e seus
filhos gêmeos, ainda crianças. Sentado na praia, com um caderno de anotações e
a caneta que ganhara do afilhado, ele revivia em pensamentos as aventuras com
Rubens.
Dalcy
não apenas encontrou o mar, mas também um fechamento simbólico para sua jornada,
revelando a força de sua amizade com Rubens, perpetuada pelas gerações
seguintes. Compôs uma poesia, e acabou cochilando, sonhando assim com o amigo, que
com um violão tocava e cantavam as músicas compostas. Ao ver o padrinho quieto
e cabisbaixo o afilhado se desespera, pensando que o mesmo também havia partido.
Dalcy desperta com o largo sorriso, sorriso tal que poucas vezes esboçou, se
não para esse mesmo amado afilhado desde a infância. Enquanto isso um dos
filhos do afilhado o traz uma nova concha, simbolizando a continuidade e a
renovação do ciclo de amor e memória.