quarta-feira, 8 de outubro de 2025

ENTRE

O dia está muito louco
O sol se pôs entre nuvens 
De tanto que gritei, estou rouco
O choro se fez açudes 

Um dia de muito sol
Calor, erosão nos ombros
No outro nenhum farol
Naufrágio entre os escombros 

Nem mar, nem chão, nem flores
Andar, escolher viver
Amar nem sempre amores
Feliz quem se basta ser

Talvez seja a quimera
O mito entre a razão 
Você? Ah, quem me dera
Andorinha e sem verão 

A vida só tem graça na arte do conviver
Jesus, graça que basta
O homem querer poder

Eu fico aqui pensando
Se bobo sou eu por crer
Talvez eu seja bobo
E nisso more o amanhecer 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

CAMA DE VENTO

Quantas noites eu deitei sem corpo, apenas carne cansada, sem nome, sem trégua, ou espera.
Os lençóis eram panos de memória, tramas sujas de restos de mim. Cada dobra guardava um pedaço de vergonha, um gesto que não disse, um grito abafado.

Quantas vezes eu coreografei silêncios na sala vazia, ensaiando com os móveis a liturgia do perdão que nunca veio.

Você, ausente e presente, sempre confundindo preço com valor, amor com prazo de validade. Eu, ofertando beijos para bocas que não pediram, apenas para não ver morrer em mim a lembrança do teu toque. Frio.

A hélice do ventilador sopra poeira e lembranças, como um relógio sem ponteiros girando o mesmo segundo. É nela que ouço tua respiração inexistente, é nela que convoco o teu partir, sem piedade, sem volta.

Hoje troquei o lençol da cama. Lavei as marcas de suor e de ausência estampada no colchão velho e duro. Mas a alma continua aqui, manchada, cheirando a quarto fechado, esperando a coragem de trocar de pele como quem troca um cobertor num ritual todo humano, profano e eucarístico.

Hoje troquei o lençol dessa enorme cama. Quem me dera trocar o disco rabiscado que em mim ecoa o teu nome já sem som.

Você é eco em minha cama de vento. E até o vento é de um ventilador.