sexta-feira, 31 de outubro de 2025

OXÍTONA

no tempo de deus 
na sabedoria da deusa
na necessidade do homem
hoje choveu

pétalas desidratadas caíram
dos ecos de tuas palavras
vi uma dança solene
se coreografar em seu vazio

tantas promessas ao vento
tantas eternidades perpetuadas
quantos fins ensaiados

eu, como sempre, sertão 
você, como nunca, busca
eu, numa sútil, erosão 
você, na maestria da fuga

ontem e hoje choveu
em minhas lágrimas 
oxítona do verão 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

TUDO DEU

 Quando o chão resseca e o vento pesa em pranto

O Rio Paraíba está seco, eco de grito 

Os olhos encharcados se derramam no rito 

Que escorre pelas veias, sufoca o encanto 

A esperança se afoga, morre manso espanto 

Mas surge um gesto terno, luz no desalinho 

Mesmo no pouco que resta, há de vir o carinho 

Pois no silêncio da peste, a voz rompe o açoite 

No susto da seca, brota o dom que foi convite 

Ela que pouco tinha, muito deu

Eu que nada tinha, sobreviveu

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

ENTRE

O dia está muito louco
O sol se pôs entre nuvens 
De tanto que gritei, estou rouco
O choro se fez açudes 

Um dia de muito sol
Calor, erosão nos ombros
No outro nenhum farol
Naufrágio entre os escombros 

Nem mar, nem chão, nem flores
Andar, escolher viver
Amar nem sempre amores
Feliz quem se basta ser

Talvez seja a quimera
O mito entre a razão 
Você? Ah, quem me dera
Andorinha e sem verão 

A vida só tem graça na arte do conviver
Jesus, graça que basta
O homem querer poder

Eu fico aqui pensando
Se bobo sou eu por crer
Talvez eu seja bobo
E nisso more o amanhecer 

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

CAMA DE VENTO

Quantas noites eu deitei sem corpo, apenas carne cansada, sem nome, sem trégua, ou espera.
Os lençóis eram panos de memória, tramas sujas de restos de mim. Cada dobra guardava um pedaço de vergonha, um gesto que não disse, um grito abafado.

Quantas vezes eu coreografei silêncios na sala vazia, ensaiando com os móveis a liturgia do perdão que nunca veio.

Você, ausente e presente, sempre confundindo preço com valor, amor com prazo de validade. Eu, ofertando beijos para bocas que não pediram, apenas para não ver morrer em mim a lembrança do teu toque. Frio.

A hélice do ventilador sopra poeira e lembranças, como um relógio sem ponteiros girando o mesmo segundo. É nela que ouço tua respiração inexistente, é nela que convoco o teu partir, sem piedade, sem volta.

Hoje troquei o lençol da cama. Lavei as marcas de suor e de ausência estampada no colchão velho e duro. Mas a alma continua aqui, manchada, cheirando a quarto fechado, esperando a coragem de trocar de pele como quem troca um cobertor num ritual todo humano, profano e eucarístico.

Hoje troquei o lençol dessa enorme cama. Quem me dera trocar o disco rabiscado que em mim ecoa o teu nome já sem som.

Você é eco em minha cama de vento. E até o vento é de um ventilador.